Fiar, tecer, narrar, criar


“Às mulheres não foi dado durante séculos escrever. Elas traçavam sinais de criação usando linhas enfiadas em finos orifícios, em teares, manipulando pequenos instrumentos de fabricação caseira. Com isso, transfiguravam o mundo, escrevendo signos que substituíam as palavras.”(ALMEIDA, 2006)

No mito e na arte, a tecelagem pode aparecer como uma forma de narrativa. Em culturas de diversos lugares e épocas, os painéis e tapeçarias são, não somente ornamentos, mas também documentos, traduzindo, em imagens tecidas, fatos históricos, mitológicos ou cenas da vida cotidiana.

No mito de Aracne, o que suscita a ira da deusa Atená, além da arrogância daquela mortal, é o tema de sua tapeçaria, a narrativa das aventuras amorosas de Zeus. Atená castiga a sua rival fazendo com que ela se arrependa e de tão culpada, se enforque. Mas por piedade ou para que ela pagasse eternamente pela sua arrogância, Atená a transforma numa aranha.

Outro mito grego exemplifica a tecelagem como narrativa. É a história de Filomena, raptada e violada por seu cunhado Tereus.

Ele lhe corta a língua para impedir que o delate e a tranca numa torre. Mesmo prisioneira, a moça consegue tecer sua história e faz com que a tapeçaria chegue às mãos de sua irmã que, compreendendo a mensagem, consegue encontrá-la e buscar justiça.

Ovídio narra, nas Metamorfoses, a história das filhas de Mínias, que eram devotas de Minerva (Atená) e que se recusam a participar dos cultos orgiásticos. Durante os festivais de Baco (Dioniso), continuam a tecer, enquanto contam histórias para se entreter e aliviar o trabalho pesado. Dessa forma, usam as atividades paralelas da tecelagem e da narrativa como uma forma de resistência, em defesa de sua liberdade de culto e opinião.

No simbolismo de algumas palavras, podemos observar a analogia entre as atividades de fiar e tecer e a narrativa. Nos Upanixades, a palavra sutra, que designa o fio que liga todos os seres, o mundo terreno e o espiritual, significa também os textos búdicos. Na Índia, shruti e smriti tanto significam urdidura e trama quanto os frutos das faculdades intuitiva e discursiva.

Em chinês, o caractere composto de mi (fio grosso) e de king (curso d’água subterrâneo) designa tanto a urdidura do tecido quanto os livros essenciais; wei é ao mesmo tempo o comentário desses livros e a trama.

Em nosso idioma, também utilizamos, como vocabulário literário, termos que remetem ao ofício da tecelagem, como trama, enredo, texto, fio da narrativa

. Ana Maria Machado utiliza esse simbolismo para descrever seus sentimentos durante o processo de criação: “Quando estou escrevendo alguma obra de ficção mais complexa, sempre fico assim, me sentindo muito ligada a tudo que está se criando na natureza em volta de mim. Além disso, a noção de que existe uma estrutura subjacente, um projeto inconsciente segundo o qual se ordena a criação, é uma velha obsessão de quem escreve. Nem chega a haver novidade alguma em associar essa força regente a elementos de tecelagem e tapeçaria.” (MACHADO, 2006)

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